42. grito silencioso
Eu gostava de conseguir dizer tudo aquilo que trago dentro de mim, mas sei que as palavras são como as cartas, depois de batidas não podem ser recolhidas.
No outro dia escrevi sobre a falta de sensibilidade e o modo como a honestidade, sem cautela, pode ferir. Escrevi sobre a importância de estudar bem aquilo que se vai dizer, de se pensar antes de falar. Nesse texto foquei-me naqueles que são brutos, inconvenientes, que falam primeiro e pensam depois. Naqueles que para expressarem a sua verdade não olham a meios nem pensam que a sua verdade é apenas a sua e não a de todos; que pode magoar; que pode não ser necessária, sobretudo quando nem sequer é solicitada. Mas esqueci-me de vos falar acerca dos outros, daqueles que, precisamente por estudarem muito bem todos os "se's", se inibem de falar. E se calam, engolindo em seco, mantendo a sua honestidade presa no pensamento. Estarão mais corretos do que os primeiros? Sinceramente, não sei.
Eu, que faço parte do segundo grupo, começo a olhar para a questão de outra perspetiva. A visão de alguém que está cansada de ser a conciliadora, a que apazigua os ânimos e procura sempre a harmonia. Porque é bom ser a pessoa que ergue a bandeira branca da paz e tréguas, mas é profundamente injusto esse papel sobrar sempre para os mesmos. O que eu tenho sentido é isso mesmo: injustiça. E revolta. Às vezes apetece-me gritar e comportar-me como os outros, que falam com toda a certeza do mundo. Apetece-me ser insensata, apetece-me bater o pé e esperar que o outro ceda e se renda. Apetece-me ser honesta, doa a quem doer, e dizer tudo aquilo que acho, sem pensar nas consequências. Por uma vez na vida, gostava de me comportar de forma inconsequente e impulsiva. Para ver o que aconteceria e experimentar essa sensação única.
Como partilhei anteriormente, esta procura de paz esconde muitas vezes uma dificuldade de afirmação e definição de limites. No outro dia, uma amiga com quem vivi na universidade partilhava uma atitude que eu tinha tido quando moramos juntas em relação a um terceiro companheiro de casa, que andava sempre a protelar a realização das tarefas domésticas até que foi encostado à parede (metaforicamente, está claro!) por mim e começou a fazer a sua devida parte. Depois de a ouvir contar esta história, só consegui questionar "fui mesmo eu que fiz isso?". Parecia-me que estava a falar de uma outra pessoa e não de mim, não me reconheci naquela atitude, com muita pena minha. Porque tenho saudades de ser essa pessoa afirmativa e assertiva que sabe dizer as coisas e não deixa nada pendente. Ao longo do tempo, não posso deixar de notar que me tornei mansa, delicada a um ponto que tenho tanto receio de ferir suscetibilidades que ando com as pessoas ao colo como se fossem de vidro e fossem quebrar ao mínimo comentário.
Acredito com convicção que espelhamos nos outros aquilo que vai dentro de nós; que esta preocupação em magoar os outros reflete o meu medo em sair magoada e, mais profundamente, evidencia a minha necessidade de agradar e dificuldade em acreditar que as pessoas podem gostar de mim pelo que sou na íntegra e não apenas quando sorrio e aceno. Não sei precisar o momento em que esta estratégia me foi útil e começou a fazer parte do meu reportório comportamental, mas sei que se cristalizou de tal modo que só poderá ter ocorrido numa situação e contexto em que foi altamente importante para a minha sobrevivência emocional (*inserir tom dramático*).
Isto só me torna ainda mais curiosa (e um bocadinho invejosa, em alguns momentos) em relação às pessoas que dizem aquilo que pensam, doa a quem doer. Acredito que deverá ser uma sensação de liberdade imensa e de homeostasia plena. Para mim, normalmente, o equilíbrio obtém-se quando existe paz exterior, mas existem exceções e é por essas que comecei a escrever este desabafo. É sobre as situações em que engolir em seco, respirar fundo até 1000, e pensar muito antes de falar se torna asfixiante e revoltante. É sobre os momentos em que a paz interna não se alimenta apenas da harmonia em redor e precisa de mais. Precisa de catarse, de movimento e liberdade. Precisa até de provocar reação no outro, por mais triste que possa ser dizê-lo. Mas precisa de causar impacto, de fazer os outros compreender, nem que seja à força, que existem mais perspetivas e posições do que as suas. É sobre os momentos em que me apetece gritar e dizer tudo o que penso, sem filtros, sem cuidados, sem pensar nas consequências.
Nesta fase que me encontro a viver, não faltam oportunidades para sentir esta asfixia. Com várias pessoas e diversas situações. Tenho guardado tudo para mim, optando pelo silêncio ou pela retirada. Chego mesmo a afastar-me para respirar e focar-me noutros estímulos. Ando a encher, a acumular e começo a sentir os sinais acusatórios de pressão. A irritabilidade crescente, a respiração curta alternada com profunda, o revirar de olhos abismal que me faz temer que os olhos não retomem a sua posição base. E esta inquietação, este formigueiro que me percorre o corpo quando estou perto de gritar e dizer tudo o que penso. Estou à beira do precipício da assertividade, ou, pensando melhor, da agressividade. Do 8 para o 80, da passividade mansa para a agressividade que leva tudo à frente.
Por isso, escrevo. Para organizar estes pensamentos e refrear estas emoções. Para, mais uma vez, colocar tudo em perspetiva. Para gritar através da palavra escrita, a minha forma preferida de expressão. Para libertar tudo que trago dentro de mim. É o que a escrita representa para mim, desde sempre. Sei que não é suficiente e que, como Jung tão bem disse, o que resiste, persiste. Mas, para já, é tudo que tenho e é o único lugar onde não me censuro e me permito tudo.
Gosto, genuinamente, de ser mais harmonia do que conflito; de apaziguar em vez de complicar. Não mudaria a minha forma de ser, não considero que seja incorreta. Mas mudaria o modo como a expresso, porque me torna vulnerável e um cordeiro em terra de lobos.